Trabalhadores acusam fornecedor de laranjas da Cutrale de trabalho escravo

Aliciado na Bahia para trabalhar na colheita no interior de São Paulo, grupo afirma ter sido submetido a jornadas exaustivas de até 11 horas diárias e descontos salariais não previstos em contrato; “Sem qualquer condição digna de sobrevivência', diz advogado na ação
Por Poliana Dallabrida
 08/04/2022

Há oito meses, um grupo de 13 trabalhadores briga na Justiça contra o produtor paulista Francisco Carlos Falavigna e a gigante do setor de laranja Sucocitrico Cutrale. Eles alegam terem sido submetidos a condições análogas à escravidão nas fazendas de Falavigna, que é fornecedor da multinacional brasileira – a Cutrale é uma das principais produtoras de suco concentrado de laranja do mundo, com clientes na Europa, Estados Unidos e Ásia. 

Segundo relatado no processo judicial, os trabalhadores colhiam laranjas por até 11 horas por dia, com apenas 15 minutos de intervalo, de segunda a sábado, e sem o pagamento de horas extras. No alojamento, não havia espaço para todos nos quartos. Alguns precisavam dormir em colchões no chão da cozinha. Despesas de aluguel, água, energia elétrica e alimentação eram descontadas do pagamento mensal, diferentemente das promessas feitas no momento da contratação.

Entenda o caso

Os trabalhadores foram aliciados na Bahia com a promessa de um bom salário no município de Espírito Santo do Turvo (SP) e região. O “turmeiro” de Falavigna – como são conhecidos os responsáveis por aliciar trabalhadores safristas – havia prometido, além do salário por produtividade, hospedagem e alimentação por conta do produtor.

As violações trabalhistas denunciadas ocorreram entre agosto e novembro de 2020; caso chegou à Justiça um ano depois. (Foto: Marcos Wieske/Repórter Brasil)

Em agosto de 2020, ao chegaram no local onde passariam os próximos três meses, os trabalhadores teriam encontrado um cenário bem diferente do prometido. O fornecedor da Cutrale, segundo relatado na ação que tramita na Vara do Trabalho de Santa Cruz do Rio Pardo (SP), ofereceu duas casas que abrigaram de 8 a 9 trabalhadores. Cada alojamento possuía dois quartos e apenas um banheiro. Não havia mesas, cadeiras, armários e camas, apenas colchões.

O fazendeiro passou, então, a realizar diversos descontos no salário mensal dos colhedores para o pagamento do aluguel, energia e água. Isso deixou os trabalhadores “sem qualquer condição digna de sobrevivência”, afirma no processo judicial Bruno Cesar Pereira Braulio, advogado que representa o grupo.

O pagamento oferecido era de cerca de R$ 0,50 por caixa de laranja colhida. Os trabalhadores colhiam, em média, 145 caixas por dia, segundo cálculos apresentados no processo. Considerando a jornada de trabalho e os dias trabalhados durante um mês – cerca de 25 –, o salário médio mensal por produção deveria alcançar R$ 1.812,50. Mas o produtor rural, afirma o advogado dos trabalhadores no processo, “jamais pagou o salário devido”.

Ao final da safra, o grupo foi dispensado sem receber as verbas rescisórias estabelecidas por lei mesmo em contratos temporários, como o 13º salário, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e as férias proporcionais. O valor total da ação é de R$ 284,3 mil.

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Greves e ameaças

Conhecido produtor de laranjas do interior de São Paulo, Falavigna possui um extenso histórico de multas trabalhistas. Além disso, em novembro do ano passado, a Fazenda Santa Lucia, principal propriedade do produtor no centro-oeste paulista, foi palco de uma paralisação de trabalhadores que tentavam negociar uma remuneração melhor pela caixa de laranja colhida.

“Não quisemos entrar no pomar até o empreiteiro oferecer um valor melhor”, explica Silvia*, de 57 anos. Subordinado ao dono da fazenda, o empreiteiro é o responsável por coordenar os trabalhadores contratados para a safra. A turma de Silvia* era composta por cerca de 45 trabalhadores.

Segundo a trabalhadora ouvida pela Repórter Brasil, o empreiteiro havia prometido o pagamento de R$ 1,40 por caixa de laranja colhida, mas nunca pagou mais de R$ 1. Sem avanços nas negociações, parte do grupo bloqueou as duas entradas da fazenda. “O produtor ameaçou chamar a polícia e tudo. Quem ficou na porteira principal da fazenda foi mais atingido. Eu tomei três dias de gancho”, conta Sílvia.

As reivindicações dos trabalhadores contratados por Falavigna eram praticamente as mesmas enfrentadas por outros colhedores na fazenda há dez anos. Em 2013, o produtor assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT) quando 250 colhedores de laranja cruzaram os braços para exigir melhores condições de pagamento, de transporte e de alimentação. Este foi o terceiro acordo assinado com o MPT em menos de três anos.

Relação com a Cutrale

A parceria comercial entre Francisco Falavigna e a Cutrale é de longa data. Ambos são réus em pelo menos dez processos que tramitam na Justiça do Trabalho desde 2015. Em todas as ações, a gigante do setor se defende das acusações afirmando que sua relação com Falavigna é meramente comercial, e não de terceirização de mão de obra. Nesse cenário, a empresa não pode ser responsabilizada da mesma forma que o empregador principal.

Em resposta à Repórter Brasil, a Sucocítrico Cutrale afirmou que seus contratos de compra de fruta “possuem cláusulas claras sobre a necessidade de cumprimento da legislação trabalhista brasileira” e que a empresa “possui protocolos internos para a apuração de eventuais não conformidades que sejam trazidas ao nosso conhecimento, para que sejam tomadas as medidas cabíveis se necessário – incluindo a possibilidade de término da relação comercial entre as partes”. Leia a resposta na íntegra aqui

A Repórter Brasil também tentou contato com o produtor Francisco Falavigna por telefone e enviou uma série de perguntas ao seu advogado, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

Histórico de casos de trabalho escravo

Esta não é a primeira vez que a Cutrale é associada ao crime de trabalho escravo. Em março de 2019, representantes da Feraesp denunciaram às autoridades condições precárias de alojamento e trabalho de safristas da laranja em uma fazenda no município de Ubirajara (SP). A propriedade fazia parte de um consórcio de fazendeiros que fornecia o fruto para a Cutrale.

Em 2013, a empresa foi responsabilizada diretamente por  um flagrante de trabalho escravo ocorrido em laranjais da própria Cutrale. A prática foi identificada nas fazendas Vale Verde e Pontal, em municípios do Triângulo Mineiro. Os 23 trabalhadores resgatados estavam alojados em condições precárias, não tinham direito a descanso semanal remunerado e precisaram se endividar para comprar alimentos e itens de higiene.

Segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência, 178 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão no setor da laranja desde 2003. Mas o tamanho real do problema é mascarado pela carência de fiscalizações no meio rural, afirma o procurador do Trabalho em Araraquara (SP) Rafael de Araújo Gomes.

“Eu próprio ajuizei, pelo MPT, em 2009, uma ação civil pública em face da União pela extrema carência de auditores fiscais que já se observava, e o problema só piorou desde então. Sem fiscalização constante, a tendência de empresas e empregadores, em qualquer setor econômico, é relaxar e negligenciar a observância de direitos trabalhistas”.

Além da falta de auditores-fiscais, o procurador afirma que o número de denúncias de trabalho escravo no setor ainda é muito baixo. A procuradoria do MPT em Araraquara, onde está lotado, não recebe denúncias do gênero há muitos anos. “Acredito que, se houvesse denúncias consistentes de trabalho escravo no setor da laranja, teriam ocorrido pelo menos algumas operações”.

Além dos casos de trabalho escravo, o número de infrações da Cutrale também é digno de nota. A empresa possui 522 autos de infrações trabalhistas registrados até fevereiro deste ano. Desse total, 83 autuações foram registradas nos últimos cinco anos. A maior parte se refere a violações de normas sobre higiene, saúde e segurança no ambiente de trabalho. 

Em novembro do ano passado, a Repórter Brasil mostrou que a empresa demitiu trabalhadores grávidas e suspendeu o vale-alimentação em plena pandemia de Covid-19.

*Nome fictício


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